Conto - os sons dos sinos

Esta é uma história simples, como uma fábula! Existe momentos de tristeza e existe momentos de alegria e cor!

Numa estrada para o monte, seguia a pé uma mulher velha, com o seu lenço na cabeça, o seu olhar semi-fechado, era por volta do meio dia, ainda não havia tocado os sinos.

Os sinos da aldeia tocavam certeiros às doze horas, para avisar a todos o aproximar da hora do almoço. 

O sol já ia alto, o calor pelo vale já era elevado, e lá ia a mulher velha pelo deserto! 

A aldeia lá ao longe, parecia uma miragem branca no meio dos campos verdes. A poucos metros da entrada, tocaram os sinos. Doze badaladas certeiras e que ecoavam por todo o vale. 

Chegou a mercearia, escura como um bréu, entrou em silêncio, na conversa animada que surgia por entre portas, com o dono e as vizinhas beatas. Conversavam sobre as casas que iam ficando vazias por toda a aldeia.

O merceeiro, homem robusto de bigode farto, dava conversa, afinal os clientes escasseavam todos os dias, e havia que alimentar a curiosidade das suas clientes com conversas ocas. 

A mulher velha, continuava em silêncio, escolhia os produtos que não conseguia fazer na sua horta caseira. No seu saco de pano colocou o 2kg de arroz, uma garrafa de óleo, uma de azeite. Levou algumas latas de atum. Sentia falta do atum e do peixe em geral. 

Estava a mais de 40 anos, naquele vale, não tinha nascido lá. Tinha nascido a beira mar, seu pai era pescador casado com a professora primária. 

Casamento improvável, pertenciam a classes diferentes, mas cheio de amor, tinha decidido que se um dia houvesse alguém seria somente por amor. 

Voltou a mercearia, agarrou alguns pacotes de massa em silêncio, faltava somente mais o tabaco e poderia sair daquela local. Nunca em quarenta anos, havia gostado daquela mercearia, somente suportado. 

Quando chegou ao vale, reinava o silêncio, por entre as colinas, o vento fazia eco. Numa das colinas, escondida, passava um riacho límpido, com um bosque ao seu redor. Foi onde acabou por parar para descansar, depois de mais de 15 horas na carrinha das mudanças. 

Vinha com o seu companheiro, um homem maduro, que havia passado pela sua terra, e ficado por três anos. Por entre serões filosóficos, fins de tarde a beira mar, matinés de cinemas e bailes, iam conhecendo, entre os sorrisos cúmplices, e debates de ideias calorosos, partilhavam as suas vivências. 

Passado dois anos, as juras de amor, haviam sido trocadas, assumidas em compromisso. Ficaram pela terra mais um ano, até voltarem as terras da família dele, após a morte do pai. Sua mãe havia já partido a muito, restava somente a caseira que assegurava o local a sua espera. 

Tinha já dado a volta a todo as estantes, já levava o que necessitava. Olhou para uma última, e viu o bloco de cartas! Sentiu a nostalgia de escrever uma carta! Agarrou num e levou também. 

A sua sede de voltar a escrever, surgiu naquela manhã, quando acordou sozinha na cama esticada com os seus lençóis brancos, com cheiro a baunilha. O companheiro adorava baunilha, a seu tempo aprendeu a gostar. A seu tempo aprendeu a gostar de muitas coisas que não imaginava, como a escrever. 

Já não escrevia a mais de cinco anos, com a sua partida, não conseguia sentir vontade de agarrar o caderno e escrever como antes. Tinha escrito para viver, como sede insaciada, sem capacidade de conseguir conter a necessidade de escrever, seu companheiro, seu amante, aprendeu também a compreender este amor partilhado que tinha a arte!

Muitas vezes partiam juntos para a capital, para apresentarem o último livro, atingindo recorde de vendas, passado algumas semanas, uma atrás de outras. 

Quando a ela surgiu a sete anos, não esperava que o roubasse tão rapidamente, silenciosa, foi-se instalando, quando já estavam sozinhos, os quatro filhos haviam partido, ficavam os cães e os gatos. E todos os outros animais da quinta.

Estavam sozinhos a mais de 15 anos, e aprenderam a gostar da solidão dos dois, quando os filhos os visitavam, ouviam particularmente os silêncios com que faziam o dia a dia, quando se encontravam no final do dia, apresentavam-se como apaixonados, eternos amantes, que organizavam todos os momentos para estarem juntos. 

Os filhos nem sempre percebiam, mas aprenderam a compreender. Naquela família todos acabavam por compreender os momentos de cada um, como habituaram a viver com os silêncios e as palavras acesas entre os vários debates que havia por casa. 

Os temas eram sempre variados e quentes, ao som da música clássica e jazz e blues, que tocava ao longo do dia, baixo e suavemente. Naquelas tardes, juntavam-se amigos dos filhos, e alguns vizinhos das quintas vizinhas e amigos que vinham da capital para os visitar. 

A escolha de se manterem isolados naquele vale, havia sido partilhada e decidida pelos dois, tinham reconstruido tudo a sua imagem, entre o clássico, o rústico e o moderno da altura. 

Colocou o saco com as suas compras para pagar, tirou cada um dos produtos para serem pagos. Só nesse momento falou, pediu o tabaco e a conta final. Levava tabaco para uma semana, não mais. Não era usual ser tão pouco tabaco. 

Entre as voltas que deu, havia passado mais uma hora, o sino voltou a tocar. Sentiu o apetite a tomar conta de si. Saiu da mercearia e seguiu para o café/casa de chá. 

Pertencia a mais excêntrica mulher do vale e arredores, havia transformado o café do pai, numa bela casa de chá, com exposições de vários artistas conhecidos, havia levado a arte a aldeia. 

Por perto havia criado a sua residência de artistas, num tempo em que ainda nem se falava do conceito. E tantos que haviam passado por lá, entre os serões passados na sua quinta e na residência, grande parte dos artistas levava material para colocar um pais a reflectir. 

E agora as duas estavam velhas e com olhar profundo. Nunca se havia casado, não tinha filhos, somente gatos que passavam por lá, nas suas visitas matinais. 

Entrou e sentou-se, pediu uma garrafa de água, e olhou para a ementa e pediu um prato intenso, necessita de ter forças para voltar para casa. 

Hoje tinha de voltar para casa, era quarta feira, era o dia dela sair para fazer a sua ronda, depois teria mais sete dias pela frente, totalmente seus e do seu amigo, o tempo. 

Perguntou pela dona, sua amiga, responderam-lhe que estava na residência, a servir como modelo de pintura, para um nu. O sorriso surgiu espontaneamente, era um costume seu, pedir um quadro seu, ao natural, tinha uma pequena galeria erótica, para chocar as beatas da aldeia. 

Divertia-se com isso, saber que chocava as mulheres por reprimirem o seu corpo. Nesse momento sabia que já se iria despedir dela. Somente a imagem dela nua perante o pintor, lhe dava o prazer da amizade que haviam construído ao longo dos 35 anos. 

Ficou a saborear o momento, chegou o prato, comeu. Quando acabou, levantou e sentou-se na sala dos livros, era uma velha biblioteca, onde estavam as primeiras edições de todos os seus livros. Havia deixado cada exemplar assinado com a dedicatória especial, eram mais de 60 livros. Tantos como cada um dos momentos altos e baixos da sua vida. 

Olhou para eles com ternura, havia sete anos que não escrevia. Olhou para eles, sorriu. Tirou o bloco de cartas, e começou a escrever. Ficou ali mais de 3 horas a escrever, como se não houvesse amanha.  
Acabou por volta das 15 horas, e pouco depois levantou-se pagou o almoço e a sobremesa. Saiu e com calma voltou para o caminho que levava ao riacho. 

Foi com calma, saboreando cada momento. Eram 16 horas, quando o sino voltou a tocar, as outras horas haviam passado sem que notasse, estava a escrever cartas. Hoje acordava com essa vontade. 

Tinha chegado ao riacho, após três quilómetros, e sentou-se a beira da lagoa, o tempo havia secado as lágrimas, somente olhava a água a passar. Eram já 17 horas, quando o sino voltou a tocar e a ecoar por todo o vale. 

Decidiu voltar para casa, calmamente, tocando em cada árvore, velho ritual que partilhava com o companheiro quando iam passear e namorar ao longo dos anos. Ritual tão antigo como o tempo, que havia sido parado após a sua partida. 

As seis horas tocou o sino, e ela metia a chave na porta para entrar. Já não havia os cães e os gatos, somente o silêncio que habitava a casa. 

Colocou o saco na banca. Dirigiu-se para o escritório, colocou as cartas em cima da mesa redonda, onde se colocava as últimas leituras.

Olhou para a casa, sentou-se e respirou fundo. Ainda havia claridade na casa, ainda era dia.

Foi buscar o copo já preparado, agarrou na caixa com o pó do costume, colocou várias colheres, e mexeu o suficiente para ficar diluído. 

Agarrou o copo e dirigiu-se para o escritório, sentou-se no seu recanto da leitura, olhou pela janela, e viu ao fundo o riacho a passar, sorriu. 

Lembrou-se dele, fazia cinco anos que havia partido, e o silêncio havia surgido naquela casa, ao longo dos últimos anos, os parceiros de todas as horas, haviam partido, já não restava ninguém. 

A um mês surgia a noticia, o prognóstico era reservado, o tempo era curto, e a degradação esperada elevada. Quando se levantou naquela manhã sabia o que queria fazer!

Fez tudo o que era esperado, afinal às quartas feiras, saia sempre para fazer as compras e lidar com as pessoas, saindo do isolamento, em que vivia nos outros dias.

Quando acabou por tomar, deitou-se no seu recanto, por entre as almofadas de todas as cores, lembrando-se que foi assim que o viu pela primeira vez, no seu recanto de leitura no seu sotão, com uma janela enorme para a praia. Viu a passar durante as primeiras semanas, sozinho, sempre com um livro na mão e uma toalha na outra. 

Quando arranjou coragem, procurou por uma toalha e levou um dos seus últimos livros. Já escrevia e publicava, mas não se apresentava perante ninguém. Os seus pais eram os únicos que sabiam quem ela era. Quando fora a praia, nesse dia não fora ele. Saiu da praia sentindo-se desapontada e infeliz, completamente embrenhada nos seus pensamentos, quando se choca com alguém nas ruas da pequena feira que havia para festejar a santa padroeira das causas impossíveis. 

Quando se olharam, nunca mais deixaram de se olhar. 

No seu último suspiro, lembrou do seu primeiro beijo, após uma caminhada num dia nubloso, que originou uma chuvada de temporal. Quando se resguardaram surgiu o beijo, a caricia, o desejo. 

Em posição fetal, lembrou-se dessa primeira vez que acabaram por dormir juntos, enquanto chovia lá fora, e a posição que ocuparam pela primeira vez em que foram amantes. 


Quando foi encontrada, estava ao lado o que ele lhe havia escrito.

Espero por ti! 
Não te demores! 
Desejos mil! 
Fantasias tantas!
Beijos ardentes!
Não te demores!
Espero por ti!
Aqui na eternidade!
Hoje e sempre!

a data do bilhete era a data da última vez que ela havia saído à rua.


E ao longe o som do sino a tocar e a dar as 19 horas.


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