Contos de Natal - Conto Segundo - O Homem dos Caminhos

Numa clareira, um velho ancião reúne-se a volta da fogueira, e começa a preparar-se para contar a história daquela noite! Vai tocando a sua velha gaita de foles, ao som o crepitar da madeira que dança ao sabor do fogo. A população junta-se a fogueira, todos se sentam em circulo, como numa assembleia de outros tempos perdidos na memória humana.

E o velho ancião para a gaita de foles, e começa a epopeia dessa noite!

Certo dia, uma jovem a muitos, muitos anos, estafada com a vida que levava, presa num caminho que não havia desejado, ousou fazer um plano. Entre a ideia que tinha tido numa noite mal dormida e o agarrar na mochila, foram dois meses. Preparou todo o caminho com amor e dedicação e com imensas coisas, ia fazer uma viagem a pé da sua casa até a um lugar mágico, rodeado de um vale e com um espírito indomável aquela terra que ela iria conhecer. E ela iniciou o seu caminho, a pé e pelos vários dias que durou a viagem, ela conheceu muitas pessoas.

Uma criança pequena exclamou: ela foi a pé? Sozinha? Ela teve coragem?

Ela arranjou a coragem quando ela própria duvidou. Sabes o pior inimigo de cada um nós, é nada mais, nada menos que nós próprios. E irás perceber porquê!

Retomando, num dos dias de uma chuva que não parava de cair, ela chegou a uma localidade com outros amigos do caminho, no albergue, ao final do dia e dos banhos tomados, conheceu um homem, já com alguma idade, muito simpático, muito amável, que pedia uma cama para dormir e um local para comer. 

Era um homem que já havia corrido os vários caminhos que levavam a localidade mágica e indomável. Havia até tirado uma fotografia com o santo padre. Na altura que falamos, haviam santos padres que falavam do amor ao próximo como uma boa nova. Um pouco diferente dos tempos que correm, mas naquela altura haviam várias formas de acreditar na magia do amor espiritual, por isso haviam alguns mais sábios que tentavam partilhar os seus parcos conhecimentos da sua experiência no amor.

Continuando, este homem havia começado a muitos anos, a sua caminhada após perder a sua família. Não tinha qualquer bem, somente a mochila com parcas recordações e recortes de jornais que ele levava consigo como se fossem tesouros. Todos os dias fazia uma etapa, pedindo sempre um local onde pudesse dormir, alguns albergues já o conheciam e deixavam-no dormir, outros evitavam que ele pernoitasse lá. 

O seu sorriso era sempre simpático e seu olhar sempre disponível, contudo mostrava-se sempre muito dependente quando via que alguém o ajudava por breves momentos, tentava ficar ao lado dessa pessoa durante o dia de caminhada. Quase como se procurasse um colo de uma mãe. 

Havia caminhado por todos os caminhos, conhecia os vários locais, havia já dormido na rua como em alguns montes, não falava muito, somente sorria. As lágrimas rolavam facilmente pelo rosto enrugado e gasto pelo sol que queimava a pele do peregrino.

Esta jovem, ia tentando compreender quem era este homem que havia feito todos os caminhos, mas que nunca mais havia saído deles! Havia algo tenebroso na sua história, um acto de coragem que o havia feito prisioneiro nos caminhos que libertavam todos os outros. 

Poucos dias depois, encontrou-o numa outra localidade, e acabou por se sentar ao seu lado a partilhar uma parca refeição. Tentou iniciar a conversa, a curiosidade era muita, e sem que desse conta ele falou - Deves estar a tentar perceber quem eu sou! - Ela sorriu para ele, não tinha muito que dizer!

A muitos muitos anos, eu era um filho de meus pais, vivi sempre com eles, numa casa humilde, tinha dificuldades na escola, por isso comecei a trabalhar cedo no campo, com os pais. Chegou uma altura que o pais precisou de mim para combater numa guerra que eu nem sequer sabia que existia. E lá fui eu aprender a agarrar uma arma, para matar o inimigo. Diziam que era o meu inimigo, mas eu não tinha inimigos, na aldeia dava-me bem com toda a gente. E lá fui eu. Conheci camaradas, amigos de armas, e lá aprendi a atirar, a defender-me e a correr pela vida. Não pensava que fosse precisar disso tudo. Passado uns meses estou num país quente, sem conseguir respirar, com o meu pelotão, eu um simples soldado com uma arma na mão, preparar-me para matar inimigos. E lá fomos nós o pelotão defender uma pátria que não se lembrava de nós, grande parte das vezes. Passado algumas semanas, sofremos uma emboscada, e vi naquele momento todos os meus camaradas de armas a tentarem-se defender-se, e as balas voavam por cima da nossa cabeça sem pararem. - Os olhos molhados, denotavam a emoção forte, com que contava a sua história. - Nesse dia perdemos 7 em 10. Eu fui um dos que sobrevivi. Fiquei mais dois anos, vendo durante meses os meus camaradas a caírem um após o outro. Numa noite, estava com alguns camaradas, quando nos cercaram, só me lembro de levar com um tiro no pé, cair no chão. E quando acordei, havia passado três semanas dessa noite, só sobreviveram dois, eu e um outro que nunca mais vi. 

Fui colocado num jipe, depois num barco e lá cheguei a pátria. Com um sacão de roupa e alguns trocados para apanhar o comboio para a minha aldeia. Nessa viagem, conheci a mulher da minha vida, tinha um olhar meigo e tímido, como eu. Olhou-me e acabou por perguntar se vinha da guerra, tamanha era a sua curiosidade maior que a sua timidez. Respondi-lhe que sim, expliquei algumas coisas, somente as boas. As más ninguém as queria ouvir. Ninguém quer ouvir sobre os pesadelos que temos durante a noite, quando acordamos como se tivéssemos lá ainda a combater. 

Surpresa minha quando chegamos a estação de destino, e descemos os dois na mesma. Aquele dia foi o primeiro de muitos outros, até que chegou um dia e nos casamos. Ela veio viver comigo para a minha aldeia. Vivíamos os dois com os meus pais perto, no fundo da rua. Eramos felizes, e fomos durante alguns anos. Perto da nossa aldeia, começou-se a fazer o negócio da madeira. As vezes havia umas queimadas e a madeira era sempre comprada pelos madeireiros, era um bom negócio. Um dos dias tive de ir a cidade, demorei-me um pouco mais a tratar de papeis! A minha mulher estava grávida, e os meus pais estavam com ela, quando deflagrou um incêndio. Devido ao vento que se punha, o fogo de uma queimada tornou-se incontrolável, quando se deu conta alastrou-se por várias aldeias, incluído a minha. Muita gente perdeu os seus bens, e muitos perderam a vida, nomeadamente minha família. Quando cheguei a aldeia, procurei loucamente por todos, e encontrei-os todos juntos agarrados uns aos outros, para se protegerem. Não tinham conseguido escapar. Entrei num estado que não consegui falar durante alguns anos, nem mesmo mexer-me. Um dos irmãos que vivia longe, soube do sucedido, e levou-me para uma clínica. Fiquei lá perto de 10 anos, sem falar, mas a ser visitado todas as noites pelos fantasmas. Num dos dias um novo doente chegou, com histórias mirabolantes, e acabou por falar deste caminho. Nesse momento nasceu em mim a vontade de o percorrer. Passado seis meses estava de mochila feita, e iniciei o caminho sem preparação alguma, simplesmente com vontade de chegar a cidade da magia. 

Desde que comecei nunca mais tive pesadelos, nunca mais deixei dormir a noite, seja onde for. Contudo nunca entrei na cidade da magia. 

Porquê? 

Porque tenho medo que os fantasmas possam voltar, e eu não consigo ajuda-los, eu não consegui ajudar ninguém. Todos me salvaram a vida, menos eu! Tu consegues perceber-me! Sabes do que falo. Também as sentes nos teus pulsos, essas algemas que nos prendem a fantasmas. 

Sim, mas eu tento soltar-me para ser livre!

Eu não estou preparado, sair do caminho, é sair para algo que eu não sei o que é! Ficarei mais três dias e depois irei para o caminho do oeste. Chegarei lá e depois voltarei e irei fazendo um de cada vez!

A quanto tempo andas nos caminhos?

A mais de vinte anos, quase trinta! Sim é muito tempo, mas eu não sei fazer mais nada, somente ser salvo pelos outros. No caminho consigo sê-lo, ver mulheres como o meu amor, e sentir que poderia ter sido mais tempo feliz, vejo os camaradas perdido nos campos de batalha, vejo os meus pais a sorrirem e a dar-me apoio. Em cada uma das pessoas que passam pelo caminho vejo todos os que perdi, por um momento acabo por voltar a viver com eles. Como posso sair dos caminhos e perder tudo isto?

-
Ela ficou em silêncio, comeram uma maça cada um e ficaram a contemplar a paisagem. Pouco tempo depois ele levantou-se e continuou a caminhada. ela ficou a reflectir sobre o Homem.

O homem dos caminhos, que estava preso aos caminhos que nunca chegava a finalizar, sempre na procura pela cara daqueles que perderá num peregrino que passa. 

Ela agarrou a mochila e foi para o albergue, naquele dia já não ia caminhar, somente dizer aos seus o quando os amava. No dia seguinte chegaria ao seu destino, a cidade da magia!


e a criança perguntou: Qual era a Cidade da Magia?

o velho ancião respondeu: Santiago de Compostela!

Terminou com a velha gaita de foles! Aos poucos iam saindo da roda em silêncio, a história de hoje era forte. Sabiam que falariam no fim de semana, sobre estes contos. 

O fogo extingui-se e o silêncio reinou naquela noite!

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